terça-feira, 23 de maio de 2017

Modelo de resumo

Uma vela para Dario, conto de Dalton Trevisan, narra o drama vivido por Dario, um transeunte, que, devido a um ataque cardíaco ou epilético, fica exposto, na rua, ao abandono, à curiosidade e à indiferença dos que por ali passam. O narrador do texto nos mostra algumas tentativas de socorrer Dario, mas ninguém quer assumir responsabilidades por um estranho; falta solidariedade e sobra oportunismo, já que, no decorrer da narrativa, todos os objetos que Dario portava somem, até mesmo sua aliança que era apertada e só saía com sabão. A multidão o rodeia somente até alguém gritar que Dario morreu; então todos se dispersam, cada um para seu lado, enquanto Dario permanece ali até a chegada do carro do IML. O único gesto realmente solidário é o de um menino de cor, que leva uma vela e acende ao lado do cadáver de Dario.

Modelos de resumo

Apólogo brasileiro sem véu de alegoria, de Alcântara Machado, é um conto sobre um cego, músico, que viaja para Belém com seu guia, após um concerto de flauta em outra cidade. O cego, Baiano Velho, promove uma rebelião no trem quando sabe que não há luz nos vagões. O trem fica destruído e, quando chega em Belém, o delegado não acredita que o responsável pelo movimento foi um cego.

Os dois bonitos e os dois feios - de Rachel de Queiroz

Nunca se sabe direito a razão de um amor. Contudo, a mais frequente é a beleza. Quero dizer, o costume é os feios amarem os belos e os belos se deixarem amar. Mas acontece que às vezes o bonito ama o bonito e o feio o feio, e tudo parece estar certo e segundo a vontade de Deus, mas é um engano. Pois o que se faz num caso é apurar a feiúra e no outro apurar a boniteza, o que não está certo, porque Deus Nosso Senhor não gosta de exageros; se Ele fez tanta variedade de homens e mulheres neste mundo é justamente para haver mistura e dosagem e não se abusar demais em sentido nenhum. Por isso também é pecado apurar muito a raça, branco só querendo branco e gente de cor só querendo os da sua igualha — pois para que Deus os teria feito tão diferentes, se não fora para possibilitar as infinitas variedades das suas combinações? O caso que vou contar é um exemplo: trata de dois feios e dois bonitos que se amavam cada um com o seu igual. E, se os dois bonitos se estimavam, os feios se amavam muito, quero dizer, o feio adorava a feia, como se ela é que fosse a linda. A feia, embalada com tanto amor, ficava numa ilusão de beleza e quase bela se sentia, porque na verdade a única coisa que nos torna bonitos aos nossos olhos é nos espelharmos nos olhos de quem nos ame. Vocês já viram um vaqueiro encourado? É um traje extraordinariamente romântico e que, no corpo de um homem e delgado, faz milagres. É a espécie de réplica em couro de uma armadura de cavaleiro. Dos pés à cabeça protege quem a veste, desde as chinelas de rosto fechado, e as perneiras muito justas ao relevo das pernas e das coxas, o guarda-peito colado ao torso, o gibão amplo que mais acentua a esbelteza do homem e por fim o chapéu que é quase a cópia exata do elmo de Mambrino. Aliás, falei que só assenta roupa de couro em homem magro e disse uma redundância, porque nunca vi vaqueiro gordo. Seria mesmo que um toureiro gordo, o que é impossível. Se o homem não for leve e enxuto de carnes, nunca poderá cortar caatinga atrás de boi, nem haverá cavalo daqui que o carregue. Os dois heróis da minha história, tanto o feio como o bonito, eram vaqueiros do seu ofício. E as duas moças que eles amavam eram primas uma da outra — e apesar da diferença no grau de beleza, pareciam-se. Sendo que uma não digo que fosse a caricatura da outra, mas era, pelo menos, a sua edição mais grosseira. O rosto de índia, os olhos amendoados, a cor de azeitona rosada da bonita, repetidos na feia, lhe davam uma cara fugidia de bugra; tudo que na primeira era graça arisca na segunda se tornava feiúra sonsa. De repente, não se sabe como, houve uma alteração. O bonito, inexplicavelmente, mudou. Deixou de procurar a sua bonita. Deu para rondar a casa da outra, a princípio fingindo um recado, depois nem mais esse cuidado ele tinha. Sabe-se lá o que vira. No fundo, talvez obedecesse àquela abençoada tendência que leva os homens bonitos em procura das suas contrárias; benza-os Deus por isso, senão o que seria de nós, as feiosas? Ou talvez fosse porque a bonita, conhecendo que o era, não fizesse força por sustentar o amor de ninguém. Enquanto a pobre da feia todos sabem como é — aquele costume do agrado e, com o uso da simpatia, descontar a ingratidão da natureza. E embora o seu feio fosse amante dedicado, quanto não invejaria a feia a beleza do outro, que a sua prima recebia como coisa tão natural, como o dia ser dia e a noite ser noite. Já a feia queria fazer o dia escuro e a noite clara — e o engraçado é que o conseguiu. Muito pode quem se esforça. O feio logo sentiu a mudança e entendeu tudo. Passou a vigiar os dois. Se esta história fosse inventada poderia dizer que ele, se vendo traído, virou-se para a bonita e tudo se consertou. Mas na vida mesmo as pessoas não gostam de colaborar com a sorte. Fazem tudo para dificultar a solução dos problemas, que, às vezes, está na cara e elas não querem enxergar. Assim sendo, o feio ficou danado da vida, e nem se lembrou de procurar consolo junto da bonita desprezada; e esta, se sentindo de lado, interessou-se por um rapaz bodegueiro que não era bonito como o vaqueiro enganoso, mas tinha muito de seu e podia casar sem demora e sem condições. Assim, ficaram em jogo só os três. O feio cada dia mais desesperado. A feia, essa andava nas nuvens, e toda vez que o "primo" (pois se tratavam de primos) lhe botava aqueles olhos verdes — eu falei que além de tudo ele ainda tinha os olhos verdes? — ela pensava que ia entrar de chão adentro, de tanta felicidade. Mas o pior é que os dois vaqueiros ainda saíam todo o dia juntos para o campo, pois eram campeiros da mesma fazenda e se haviam habituado a trabalhar de parelha, como Cosme e Damião. Seria impossível se separarem sem que um dos dois partisse para longe, e, é claro, nenhum deles pretendia deixar o lugar vago ao outro. Assim estava a intriga armada, quando a feia, certa noite, ao conversar na janela com o seu bonito que lá viera furtivo, colheu um cravo desabrochado no craveiro plantado numa panela de barro e posto numa forquilha bem encostada à janela (era uma das partes dela, ter todos esses dengues de mulher bonita) e enquanto o moço cheirava o cravo, ela entrefechou os olhos e lhe disse baixinho: — Você sabe que o outro já lhe jurou de morte? (Vejo que esta história está ficando muito comprida — só deixando o resto para a semana que vem.) Falei que o desprezado jurara de matar o traidor. Seria verdade? Quem sabe as coisas que é capaz de inventar uma mulher feia improvisada em bonita pelo amor de dois homens, querendo que o seu amor renda os juros mais altos de paixão? O belo moço assustou. Gente bonita está habituada a receber da vida tudo a bem dizer de graça, sem luta nem inimizade, como seu direito natural, que os demais devem graciosamente reconhecer. As mulheres o queriam, os homens lhe abriam caminho. E não é só em coisas de amor: de pequenino, o menino bonito se habitua a encontrar facilidades, basta fazer um beiço de choro ou baixar um olho penoso, todo o mundo se comove, pede uni beijo, dá o que ele quer. Já o feio chora sem graça, a gente acha que é manha, mais fácil dar-lhe uns cascudos do que lhe fazer o gosto. Assim é o mundo, e se está errado, quem o fez foi outro que não nos dá satisfações. Pois o bonito assustou. Deu para olhar o outro de revés, ele que antes vivia tão confiado, como se adiasse que a obrigação do coitado era lhe ceder a menina e ainda tirar o chapéu. Passou a ver mal em tudo. De manhã, ao montar a cavalo, examinava a cilha e os loros, os quatro cascos do animal. Ele, que só usava um canivete quando ia assinar criação, comprou ostensivamente uma faca, afiou-a na beira do açude, e só a tirava do cós para dormir. E quando saía a campo com o companheiro, em vez de irem os dois lado a lado, segundo o costume, marchava atrás, dez braças aquém do cavalo do outro. O feio não falava nada. Fazia que não enxergava as novidades do colega. Como sempre andara armado, não careceu comprar faca para fazer par com a peixeira nova do rival. E, sendo do seu natural taciturno, continuou calado e fechado consigo. E o outro — nós mulheres estamos habituadas a pensar que todo homem valente é bonito, mas a recíproca raramente é verdade, e nem todo bonito é valente. Este nosso era medroso. Era medroso mas amava, o que o punha numa situação penosa. Não amasse, ia embora, o mundo é grande, os caminhos correm para lá e para cá. Agora, porém, só lhe restava amar e ter medo. Ou defender-se. Mas como? O rival não fazia nada, ficava só naquela ameaça silenciosa; as juras de morte que fizera — se as fizera — de juras não tinham passado ainda. Meu Deus, e ele não era homem de briga, já não disse? Tinha a certeza de que se provocasse aquele alma fechada, morria. Bem, as juras eram verdadeiras. O feio jurara de morte o bonito e não só de boca para fora, na presença da amada, mas nas noites de insônia, no escuro do quarto, sozinho no ódio do seu coração. Levava horas pensando em como o mataria — picado de faca, furado de tiro, moído de cacete. Só conseguia dormir quando já estava com o cadáver defronte dos olhos, bonito e branco, ah, bonito não, pois, quando o matava em sonhos, a primeira coisa que fazia era estragar aquela cara de calunga de loiça, pondo-a de tal modo feia que até os bichos da cova tivessem nojo dela. Mas como fazer? Não poderia começar a brigar, matá-lo, sem quê nem mais. Hoje em dia justiça piorou muito, não há patrão que proteja cabra que faz uma morte, nem a fuga é fácil, com tanto telégrafo, avião, automóvel. E de que servia matar, tendo depois que penar na prisão? Assim, quem acabaria pagando o malfeito haveria de ser ele mesmo. O outro talvez fosse para o purgatório, morrendo sem confissão, mas era ele que ficava no inferno, na cadeia. Aí então teve a idéia de uma armadilha. Botar uma espingarda com um cordão no gatilho... quando ele fosse abrindo a porta. Não dava certo, todo o mundo descobriria o autor da espera. Atacá-lo no mato e contar que fora uma onça... Qual, cadê onça que atacasse vaqueiro em pleno dia? E a chifrada de um touro? Difícil, porque teria que apresentar o touro, na hora e no lugar... Lembrou-se então de um caso acontecido muitos anos atrás, quase no pátio da fazenda. O velho Miranda corria atrás de uma novilha, a bicha se meteu por sob um galho baixo de mulungu, o cavalo acompanhou a novilha, e em cima do cavalo ia o vaqueiro: o pau o apanhou bem no meio da testa, lá nele, e quando o cavalo saiu da sombra do mulungu, o velho já era morto... Poderia preparar uma armadilha semelhante? Como induzir o rival?... Levou quatro dias de pesquisa disfarçada para descobrir um pau a jeito. Afinal achou um cumaru à beira de uma vereda, onde o gado passava para ir beber na lagoa. O cumaru estirava horizontalmente um braço a dois metros do chão, cobrindo a vereda logo depois que ela dava uma curva. A qualquer hora passariam de novo os dois por ali. E como só um passava pela vereda estreita, bastaria ele ficar atrás, apertar de repente o passo, meter o chicote no cavalo da frente; o outro, assustado com o disparo do cavalo, se descuidava do pau — e era um homem morto. Mas não deu certo. Isto é, deu certo do começo ao fim — só faltou o fim do fim. Pois logo no dia seguinte se encaminharam pela vereda, perseguindo um novilhote. O bonito na frente, o feio atrás, como previsto. Quando chegaram à curva que virava em procura do cumaru, o de trás ergueu o relho, bateu uma tacada terrível na garupa do cavalo da frente, que já era espantado do seu natural, e o animal desembestou. Mas o instinto do vaqueiro salvou-o no último instante. Sentiu um aviso, ergueu os olhos, viu o pau, deitou-se em cima da sela e deixou o cumaru para trás. Logo adiante acabava a caatinga e começava o aceiro da lagoa. O bonito sofreou afinal o cavalo. Podia ser medroso, mas não era burro, e uma raiva tão grande tomou conta dele, que até lhe destruiu o medo no coração. Sem dizer palavra, tirou a corda do laço debaixo da capa da sela, e ficou a girar na mão o relho torcido, como se quisesse laçar o novilho que também parara várias braças além, e ficara a enfrentá-los de longe. O companheiro espantou-se: será que aquele idiota esperava laçar o boi, a tal distância? Claro que não entendera como andara perto da morte... Mas o laço, riscando o ar, cortou-lhe o pensamento: em vez de se dirigir à cabeça do novilho, vinha na sua direção, cobriu-o, apertou-se em redor dele, prendeu-lhe os braços ao corpo e, se retesando num arranco, atirou-o de cavalo abaixo. Num instante o outro já estava por cima dele, com um riso de fera na cara bonita. — Pensou que me matava, seu cachorro... Açoitou o cavalo de propósito, crente que eu rebentava a cabeça no pau... Um de nós dois tinha de morrer, não era? Pois é assim mesmo... um de nós dois vai morrer. Enquanto falava, arquejando do esforço e da raiva, ia inquirindo na corda o homem aturdido da queda, fazendo dele um novelo de relho. Daí saiu para o mato, demorou-se um instante perdido entre as aves e voltou com o que queria — um galho de imburana da grossura do braço de um homem. Duas vezes malhou com o pau na testa do inimigo. Esperou um pouco para ver se o matara. E como lhe pareceu que o homem ainda tinha um resto de sopro, novamente bateu, sempre no mesmo lugar. Chegou à fazenda, com o companheiro morto à sela do seu próprio cavalo, ele à garupa, segurando-o com o braço direito, abraçado como um irmão; com a mão esquerda puxava o cavalo sem cavaleiro. Ninguém duvidou do acidente. Foi gente ao local, examinaram o galho assassino, estirado sobre a vereda como um pau de forca. Fincaram uma cruz no lugar. E o bonito e a feia acabaram casando, pois o amor deles era sincero. Foram felizes. Ela nunca entendeu o que houvera, e remorso ele nunca teve, pois, como disse ao padre em confissão, matou para não morrer. E a moral da história? A moral pode ser o velho ditado: faz o feio para o bonito comer. Ou então compõe-se um ditado novo: entre o feio e o bonito, agarre-se ao bonito. Deus traz os bonitos de baixo da Sua Mão.

Cego e amigo Gedeão à beira da estrada - de Moacyr Scliar

— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão? — Não, Cego. Foi um Simca Tufão. — Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina. Este que passou agora não foi um Ford? — Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho. — Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos. É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso? — Não, Cego. Foi uma lambreta. — Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta. Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo! Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho? — Não, Cego. Foi o ônibus. — Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim. Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie? — Não. Foi um Volkswagen 1964. — Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época já costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango? — Não, Cego, não foi um Candango. — Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar. Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango! — Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso. — Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus? — Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão. — Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei: "Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?" — "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada. Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW? — Não, Cego. Foi um Volkswagen. — Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sei mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys? — Não, Cego. Foi um Chevrolet. — O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota? — Não, Cego. Foi um Ford 1956. (Esse texto foi publicado no livro "Para Gostar de Ler — Volume 9 — Contos", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 26.)

Papai Noel nos Trópicos - de Moacyr Scliar

Meu avô era aquilo que os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um perdedor. Nada do que fazia dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a pequena fortuna que recebera de herança; fizera um investimento maluco qualquer e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de tudo para sobreviver; foi comerciante, foi corretor de imóveis,foi vendedor de seguros, foi motorista... Até a astrologia experimentou,mas teve de encerrar a carreira depois que uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena rua. De desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele casou. Com a mulher ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência admirável, e encarava com bom humor as extravagâncias e os insucessos do marido. Tiveram oito filhos porque meu avô, além de tudo, considerava-se um patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer. A família sobrevivia, principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas clientes na alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava arranjando um bico aqui outro ali. Um dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante relativamente próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria diante da loja, com o traje vermelho característico, convidando os transeuntes a entrar no estabelecimento. A princípio, vovô rejeitou a proposta, com indignação, inclusive: o que é que você pensa que sou, posso ser pobre mas tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa nenhuma. Mas aí o homem mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco. Era mais do que lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria oferecer um Natal decente à tribo. Aceitou. E se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo, rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba, precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha. Esta semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes, e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto, cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos. Ninguém lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito. Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria. Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Pólo Norte; teria, portanto, de usar roupas quentes. — Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse papel só de camiseta? Pergunta retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não será agora que as coisas mudarão. Vovó tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada. Vovô já era um homem idoso, beirava os setenta, e a sua saúde não era das melhores; ela temia que aquilo acabasse prejudicando o homem. Chegou a sugerir que ele parasse de vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não podem se aposentar as pessoas que fazem o papel de Papai Noel? Uma idéia que vovô repelia, indignado. Não era homem de abandonar a luta. Mas os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a: — Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca. Era a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não: afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro. — Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa, continuou: — Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer. Meu pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento fantasioso. De modo que não hesitou: — Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e, pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil sorriso. — Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer. Meu pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido: — Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu? Não quero ser mais o Papai Noel. Não agüento aquela roupa, sabe? Não agüento. Você, que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas gostarão disso. E eu poderei morrer em paz. Calou-se, exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu. A melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois faleceu. A consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou. Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança. E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel. O pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma roupa de vovô. Agora, já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda inteiramente branca. Como vovô, papai foi progressivamente detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela mesma razão: a roupa é quente demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o calor.

A noite em que os hotéis estavam cheios - de Moacyr Scliar

O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro. Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos. — E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não! O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que era mais uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. Contudo, para não ficar mal, resolveu dar uma desculpa: — O senhor vê, se o governo nos desse incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente... O senhor não conhece ninguém nas altas esferas? O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas.— Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo. O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante. No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio. — O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano: — Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado. O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a idéia boa, e até agradeceu. Saíram. Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré.

ZAP - de Moacyr Scliar

Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro — uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto — zap, mudo para outro. Não gosto de novo — zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher. Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que — zap — mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e — zap — um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido — situação pouco admissível para um roqueiro de verdade —, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência — e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? — mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina — refletores que se acendem? — e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento zap — aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está — à exceção do pequeno relógio que usa no pulso — nua, completamente nua. O texto acima, publicado em "Contos Reunidos", Companhia das Letras — São Paulo, 1995, consta também do livro "Os cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Italo Moriconi, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 555.

A cartomante - de Machado de Assis

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! Interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. — Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim... Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...? Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído. Com esta publicação homenageamos Machado de Assis que, no dia 21 deste, estaria completando seu 172° aniversário.

Antes do baile verde - de Lygia Fagundes Telles

O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor. – Ele gostou de você – disse a jovem, voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento foi na sua direção, viu que chique? A preta deu uma risadinha. – Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada. A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa-de-cabeceira. O quarto estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas. – Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho. – Mas você ainda não acabou? Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes. – Acabei o quê! falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima! A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça. – O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos hoje quero ver todos. – Tem tempo, sossega – atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. – Não sei como fui me atrasar desse jeito. – Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile! – E quem está dizendo que você vai perder? A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares. – Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote... – Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal? – Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde, você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito. Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada. – Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu! – Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos. – Não faz mal – disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. – Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não agüento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro! A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz. – Estive lá. – E daí? – Ele está morrendo. Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa frigideira: A coroa do rei não é de ouro nem de prata... – Parece que estou num forno – gemeu a jovem, dilatando as narinas porejadas de suor. – Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve. – Mais leve do que isso? Você está quase nua,Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então... Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio: – Você acha, Lu? – Acha o quê? – Que ele está morrendo? – Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite. – Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante. – Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. – E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo. – Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu. – Aquilo não é sono. É outra coisa. Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta. – Quer? – Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia. A jovem despejou mais uísque no copo. – Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver. – Você está bebendo demais. E nessa correria... Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina... – Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode esperar um pouco? A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando...acabou chorando... – Num outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti á grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei. – E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar. – E seu pai? Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote. – Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta dos dedos coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? – Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender. – Mas você começa a dizer que ele está morrendo! – Pois está mesmo. – Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito. – Então não está. A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!” – gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni. – Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintado, me metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes. – E eu não agüento mais de sede – resmungou a empregada, arregaçando as mangas do quimono. – Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado, ele ficou de porre três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisa ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de jóias... – Você já se enganou uma vez – atalhou a jovem. – Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse. – Ele se fez de forte, coitado. – De forte, como? – Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar. – Ih, como é difícil conversar com gente ignorante – explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. – Você pegou meu cigarro? – Tenho minha marca, não preciso dos seus. – Escuta, Luzinha, escuta – começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. – Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura... – Ele estava se despedindo. – Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê? – Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa. A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola. – E se você desse um pulo lá só para ver? – Mas você quer ou não que eu acabe isto? – a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos resseq uidos de cola. – O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho! A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. Chutou o sapato que encontrou no caminho. – Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta! – Mas Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem agüentado o tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha santa paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na rua. Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura. – Engordei, Lu. – Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem? Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se: – Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde. – Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo. – Vem num Tufão, viu que chique? – Que é isso? – É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que... – Passou ansiosamente a mão no pescoço. – Lu, Lu, por que ele não ficou no hospital? Estava tão bem no hospital... – Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada. – Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. não podia viver mais um dia? A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas. – Falta só um pedaço. – Um dia mais... – Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante. Ambas agora trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde, pesada de lantejoulas. – Hoje o Raimundo me mata – recomeçou a mulher, grudando as lentejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. – Você não ouviu? A jovem demorou para responder. – O quê? – Parece que ouvi um gemido. Ela baixou o olhar. – Foi na rua. Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur. – Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje – começou ela num tom manso. Apressou-se: – Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, fica hoje! A empregada empertigou-se, triunfante. – Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. – O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. – Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito – acrescentou, sacudindo o saiote. – Pronto, pode vestir. Está um serviço porco, mas ninguém vai reparar. – Eu podia te dar o casaco azul – murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol. – Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviuy isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não. Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote. – Brrrr! Esse uísque é uma bomba – resmungou, aproximando-se do espelho. – Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata. A mulher tateou os dedos entre o tule. – Não acho os colchetes. A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher, através do espelho: – Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo. – Pode ser que me enganasse mesmo. – Claro que se enganou. Ele estava dormindo. A mulher franzia a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco: – Estava dormindo, sim. – Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes! – Pronto – disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. – Não precisa mais de mim, não é? – Espera! – ordenou a moça, perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. – Já estou pronta, vamos descer juntas. – Tenho que ir, Tatisa! – Espera, já disse que estou pronta... – repetiu, baixando a voz. – Só vou pegar a bolsa... – Você vai deixar a luz acesa? – Melhor, não? A casa fica mais alegre assim. No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro: – Quer ir dar uma espiada, Tatisa? – Vá você, Lu... Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua. – Lu! Lu! – a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. – Espera aí, já vou indo! E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la. Fonte: Venha ver o pôr-do-sol e outros contos.

O menino - de Lygia Fagundes Telles

Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os para trás. E os anéis se estendiam molemente para em seguida voltarem à posição anterior, formando uma coroa de caracóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim. - Quantos anos você tem, mamãe? - Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por aí, meu amor, por aí. Quer se perfumar também? - Homem não bota perfume. - Homem, homem! - Ela inclinou-se para beijá-lo. - Você é um nenenzinho, ouviu bem? É o meu nenenzinho. O menino afundou a cabeça no colo perfumado. Quando não havia ninguém olhando, achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que não houvesse ninguém por perto. Agora vamos que a sessão começa às oito - avisou ela, retocando apressadamente os lábios. O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da porta, ouviu-a dizer à empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema. Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tão bom sair de mãos dadas com a mãe. Melhor ainda quando o pai não ia junto porque assim ficava sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de se casar com uma moça igual. Anita não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com aqueles dentes saltados. Tinha que ser igualzinha à mãe. - Você acha a Maria Inês bonita, mamãe? - É bonitinha, sim. - Ah! tem dentão de elefante. E o menino chutou um pedregulho. Não, tinha que ser assim como a mãe, igualzinha à mãe. E com aquele perfume. - Como é o nome do seu perfume? - Vent Vert. Por que, filho? Você acha bom? - Que é que quer dizer isso? - Vento Verde. Vento verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento não tinha cor, só cheiro. Riu. - Posso te contar uma anedota, mãe? Posso? - Se for anedota limpa, pode. - Não é limpa não. - Então não quero saber. - Mas por quê, pô!? - Eu já disse que não quero que você diga pô. Ele chutou uma caixa de fósforos. Pisou-a em seguida. - Olha, mãe, a casa do Júlio... Júlio conversava com alguns colegas no portão. O menino fez questão de cumprimentá-los em voz alta para que todos se voltassem e ficassem assim mudos, olhando. Vejam, esta é minha mãe! - teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E lembrou deliciado que a mãe de Júlio era grandalhona e sem graça, sempre de chinelo e consertando meia. Júlio devia estar agora roxo de inveja. - Ele é bom aluno? Esse Júlio. - Que nem eu. - Então não é. O menino deu uma risadinha. - Que fita a gente vai ver? - Não sei, meu bem. - Você não viu no jornal? Se for fita de amor, não quero! Você não viu no jornal, hein, mamãe? Ela não respondeu. Andava agora tão rapidamente que às vezes o menino precisava andar aos pulos para acompanhá-la. Quando chegaram à porta do cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidão feliz. A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como se tivesse perdido toda a pressa, ficou tranqüilamente encostada a uma coluna, lendo o programa. O menino deu-lhe um puxão na saia. - Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já entrou todo mundo, pô! Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os lábios se apertavam comprimindo as palavras e os olhos tinham aquela expressão que o menino conhecia muito bem, nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele sabia que quando ela falava assim, nem súplicas nem lágrimas conseguiam fazê-la voltar atrás. - Sei que já começou mas não vamos entrar agora, ouviu? Não vamos entrar agora, espera. O menino enfiou as mãos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o que, pô?!... - É que a gente já está atrasado, mãe. - Vá ali no balcão comprar chocolate - ordenou ela entregando-lhe uma nota nervosamente amarfanhada. Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo, pediu um tablete de chocolate. Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava à beça. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu a mão com impaciência: - Vamos, meu bem, vamos entrar. Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente. - Depressa que a fita já começou, não está ouvindo a música? Na escuridão, ficaram um instante parados, envolvidos por um grupo de pessoas, algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu. - Venha vindo atrás de mim. Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas vazias - Lá, mãezinha, lá tem duas, vamos lá! Ela olhava para um lado, para outro e não se decidia. - Mãe, aqui tem mais duas, está vendo? Aqui não está bom? - insistiu ele, puxando-a pelo braço. E olhava aflito para a tela e olhava de novo para as poltronas vazias que apareciam aqui e ali como coágulos de sombra. - Lá tem mais duas, está vendo?Ela adiantou-se até as primeiras filas e voltou em seguida até o meio do corredor. Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas resolutamente. - Entre aí. - Licença? Licença?... - ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona desocupada que encontrou, ao lado de uma outra desocupada também. - Aqui, não é, mãe? - Não, meu bem, ali adiante - murmurou ela, fazendo-o levantar-se. Indicou os três lugares vagos quase no fim da fileira. Lá é melhor. Ele resmungou, pediu licença, licença?, e deixou-se cair pesadamente no primeiro dos três lugares. Ela sentou-se em seguida. - Ih, é fita de amor, pô! - Quieto, sim? O menino pôs-se na beirada da poltrona. Esticou o pescoço, olhou para a direita, para a esquerda, remexeu-se. - Essa bruta cabeçona aí na frente! - Quieto, já disse. - Mas é que não estou enxergando direito, mãe! Troca comigo que não estou enxergando! Ela apertou-lhe o braço. Esse gesto ele conhecia bem e significava apenas: não insista! - Mas, mãe... Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre os dentes e que era usado quando estava no auge, um tom tão macio que quem a ouvisse julgaria que ela lhe fazia um elogio. Mas só ele sabia o que havia debaixo daquela maciez. - Não quero que mude de lugar, está me escutando? Não quero. E não insista mais. Contendo-se para não dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou o pulôver como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo? Por que a mãe lhe falava daquele jeito, por quê? Não fizera nada de mal, só queria mudar de lugar, só isso... Não, desta vez ela não estava sendo nem um pouquinho camarada. Voltou-se então para lembrar- lhe que estava chegando muita gente, se não mudasse de lugar imediatamente, depois não poderia mais porque aquele era o último lugar vago que restava, Olha aí, mamãe, acho que aquele homem vem pra cá! Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela. O menino gemeu, Ai! meu Deus... Pronto. Agora é que não restava mesmo nenhuma esperança. E aqueles dois enjoados lá na fita numa conversa comprida que não acabava mais, ela vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o tipo não ia pra guerra, pô!... E a cabeçona da mulher na sua frente indo e vindo para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a flutuarem na tela como teias monstruosas de uma aranha. Um punhado de fios formava um frouxo topete que chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada. - Mãe, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque. - Não faça assim, filho, a fita é triste... Olha, presta atenção, agora ele vai ter que fugir com outro nome... O padre vai arrumar o passaporte. - Mas por que ele não vai pra guerra duma vez? - Porque ele é contra a guerra, filho, ele não quer matar ninguém - sussurrou-lhe a mãe num tom meigo. Devia estar sorrindo e ele sorriu também, ah! que bom, a mãe não estava mais nervosa, não estava mais nervosa. As coisas começavam a melhorar e para maior alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus olhos apareceu o retângulo inteiro da tela. - Agora sim! - disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate. Meteu-o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferecê-los à mãe. Então viu: a mão pequena e branca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de chegar. O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Por que a mãe fazia aquilo?!... Ficou olhando sem nenhum pensamento, sem nenhum gesto. Foi então que as mãos grandes e morenas do homem tomaram avidamente a mão pequena e branca. Apertaram-na com tanta força que pareciam querer esmagá-la. O menino estremeceu. Sentiu o coração bater descompassado, bater como só batera naquele dia na fazenda quando teve de correr como louco, perseguido de perto por um touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se transformando numa massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel. Redondos e estáticos, os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens sem sentido num sonho fragmentado. Os letreiros dançavam e se fundiam pesadamente, como chumbo derretido. Mas o menino continuava imóvel, olhando obstinadamente. Um bar esfumaçado, brigas, a fuga do moço de capa perseguido pela sereia da polícia, mais brigas numa esquina, tiros. A mão pequena e branca a deslizar no escuro como um bicho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da prisão, os homens agarrando as portas de grade, mais conspirações. Mais homens. A mão pequena e branca. A fuga, os faróis na noite, os gritos, mais tiros, tiros. O carro derrapando sem freios. Tiros. Espantosamente nítido em meio do fervilhar de sons e falas - e ele não queria, não queria ouvir! - o ciciar delicado dos dois num diálogo entre os dentes. Antes de terminar a sessão - mas isso não acaba mais, não acaba? -, ele sentiu, mais do que sentiu, adivinhou a mão pequena e branca desprender-se das mãos morenas. E do mesmo modo manso como avançara, recuar deslizando pela poltrona e voltar a se unir à mão que ficara descansando no regaço. Ali ficaram entrelaçadas e quietas como estiveram antes... - Está gostando, meu bem? - perguntou ela inclinando-se para o menino. Ele fez que sim com a cabeça, os olhos duramente fixos na cena final. Abriu a boca quando o moço também abriu a sua para beijar a enfermeira. Apertou os olhos enquanto durou o beijo. Então o homem levantou-se embuçado na mesma escuridão em que chegara o menino retesou-se, os maxilares contraídos, trêmulo. Fechou os punhos. Eu pulo no pescoço dele, eu esgano ele! O olhar desvairado estava agora nas espáduas largas interceptando a tela como um muro negro. Por um brevíssimo instante ficaram paradas em sua frente. Próximas, tão próximas. Sentiu a perna musculosa do homem roçar no seu joelho, esgueirando-se rápida. Aquele contato foi como ponta de um alfinete num balão de ar. O menino foi-se descontraindo. Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e pendeu a cabeça para o peito. Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou para a mãe. Ela sorria com aquela mesma expressão que tivera diante do espelho, enquanto se perfumava. Estava corada, brilhante. - Vamos, filhote? Estremeceu quando a mão dela pousou no seu ombro. Sentiu- lhe o perfume. E voltou depressa a cabeça para o outro lado, a cara pálida, a boca apertada como se fosse cuspir. Engoliu penosamente. De assalto, a mão dela agarrou a sua. Sentiu-a quente, macia. Endureceu as pontas dos dedos, retesado, queria cravar as unhas naquela carne. - Ah, não quer mais andar de mãos dadas comigo? Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça rancheira. - É que não sou mais criança. - Ah, o nenenzinho cresceu? Cresceu? - Ela riu baixinho. Beijou-lhe o rosto. - Não anda mais de mão dada? O menino esfregou as pontas dos dedos na umidade dos beijos no queixo, na orelha. Limpou as marcas com a mesma expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da calça quando cortava as minhocas para o anzol. Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentando excitada o enredo do filme. Explicando. Ele respondia por monossílabos. - Mas que é que você tem, filho? Ficou mudo... - Está me doendo o dente. - Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Você tinha hora ontem, não tinha? - Ele botou uma massa. Está doendo - murmurou inclinando-se para apanhar uma folha seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindo a boca. - Como dói, pô. - Assim que chegarmos você toma uma aspirina. Mas não diga, por favor, essa palavrinha que detesto. - Não digo mais. Diante da casa de Júlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina. - Dona Margarida. - Hum? - A mãe do Júlio. Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balanço, lendo o jornal. Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de que alguma coisa terrível ia acontecer paralisou-o atônito, obumbrado. O olhar em pânico procurou as mãos do pai. - Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho? - perguntou ela, beijando o homem na face. - Mas a luz não está muito fraca? - A lâmpada maior queimou, liguei essa por enquanto - disse ele, tomando a mão da mulher. Beijou-a demoradamente. - Tudo bem? - Tudo bem. O menino mordeu o lábio até sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras noites, igual. Igual. - Então, filho? Gostou da fita? - perguntou o pai dobrando o jornal. Estendeu a mão ao menino e com a outra começou a acariciar o braço nu da mulher. - Pela sua cara, desconfio que não. - Gostei, sim. - Ah, confessa, filhote, você detestou, não foi? - contestou ela. - Nem eu entendi direito, uma complicação dos diabos, espionagem, guerra, máfia... Você não podia ter entendido. - Entendi. Entendi tudo - ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu. - E ainda com dor de dente! - acrescentou ela desprendendo-se do homem e subindo a escada. - Ah, já ia esquecendo a aspirina. O menino voltou para a escada os olhos cheios de lágrimas. - Que é isso? - estranhou o pai. - Parece até que você viu assombração. Que foi? O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos. Os óculos pesados. O rosto feio e bom. - Pai... - murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: - Pai... - Mas meu filho, que aconteceu? Vamos, diga! - Nada. Nada. Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço.

Natal na barca - de Lygia Fagundes Teles

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio. Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal. A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água. — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. — Mas de manhã é quente. Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade. — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando. — Quente? — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas? Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta: — Mas a senhora mora aqui perto? — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje... A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno. — Seu filho? — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar. — É o caçula? Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce. — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos. Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo. — E esse? Que idade tem? — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou. Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los. — Seu marido está à sua espera? — Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes. — Há muito tempo? Que seu marido... — Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar. — A senhora é conformada. — Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. — Deus — repeti vagamente. — A senhora não acredita em Deus? — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim. Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim — Estamos chegando — anunciou. Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia: - Chegamos!... Ei! chegamos! Aproximei-me evitando encará-la. — Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão. Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho. — Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre. — Acordou?! Ela sorriu: — Veja... Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente. Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67. http://saladeestudos.com/material/lygia-fagundes-telles-natal-na-barca.pdf

Carta de um defunto rico - de Lima Barreto

"Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro nº 7..., da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte. Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior - e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços. Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente. Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros - coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado. Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos. Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza. É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si etc. etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada. Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego. De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos. Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos. Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas. Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor. Os que não conseguem isso - ai deles! Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra. O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras. Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos. É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo. O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali. Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes. Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto. Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu. Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que.. Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti! Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade. Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre... Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento. Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó? Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade. Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do José Boaventura da Silva. N.B. - Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. - J.B.S." Posso garantir que transladei esta carta para aqui sem omissão de uma vírgula.